Arte Ilusionada ou a Desilusão da Arte in Bombart 06
A pedido de algumas pessoas aqui deixo o texto publicado na revista Bombart 06 (nas bancas e livrarias até final de Dezembro).
Arte Ilusionada ou a Desilusão da Arte
Este artigo nasce um mês depois de ter recebido um e-mail, no qual a palavra “ilusão” vinha interligada, quase como que um cordão umbilical, a um sentimento negativo, desconfortável. Uns dias depois, encontrando-me a preparar teoricamente para um comissariado de exposição, deparei-me com esta sequência de frases de Samuel Beckett, que mais não fizeram do que reacender a inquietude que o significado da palavra “ilusão”, no contexto daquele e-mail, me tinha suscitado:
“Esquece, ia dizer esquece isso tudo. Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala. Vai haver uma partida, eu serei um dos que partem, não serei eu, eu estarei aqui, direi que estou longe, não serei eu, não direi nada, vai haver uma história, alguém vai tentar contar uma história. Sim, malditos desmentidos, é tudo mentira, não há ninguém, claro está, não há nada, malditas frases, deixemo-nos iludir, pelo tempo, por todos os tempos, esperando que passe, que tudo passe, que as vozes se calem, são apenas vozes, apenas mentiras. Aqui, sair daqui e ir para outro sítio qualquer, ou ficar aqui, mas com idas e vindas.” (Samuel Beckett, Textos para Nada)
Sempre havia associado a palavra “ilusão” a algo de bom, a algo por vezes intocável, mas ao mesmo tempo esperançador; a algo que estará sempre lá, longe, mas não de uma forma inexistente. Não são as ilusões o que nos move? Depois aparece Samuel Beckett a dizer que nos devemos deixar iludir pelo tempo, a falar sobre o poder que o tempo exerce sobre uma mentira. Foi nesse momento que decidi sondar o meu círculo de amigos, a fim de tentar perceber que tipo de pólo (positivo vs negativo) aplicariam às palavras “ilusão” e “desilusão” e… Fez-se espanto! A maioria, devo confessar que não todos, associou a palavra “ilusão” a algo positivo e a palavra “desilusão” a algo negativo.
Mas afinal é a desilusão que nos faz sair do engano em que estamos. É a desilusão que nos permite conhecer a verdade. É a desilusão o desengano, a franqueza, a sinceridade. É a desilusão a ilusão perdida.
Há um tipo de cegueira que pode ser arbitrária. E eu quero continuar cega em relação à palavra “ilusão”. Não quero que a passem a tratar como a má da fita, a vilã do filme, aquela que é repudiada por todos e mais nenhum. Quero continuar a deixar-me enganar pelos sentidos, pelos pensamentos. Não quero eliminar do meu meio envolvente aquilo que se me afigura ser o que não é.
Até porque a ilusão não actua sozinha nesta farsa. Anda sempre de mão dada com o tempo, a memória e a história. São todos partícipes desse crime cometido contra a Verdade.
1. Ilusão e Desilusão como Cúmplices
Rosalind Nashashibi (Reino Unido, 1973), através do trabalho The Prisoner (2008), um vídeo de cinco minutos apresentado em dupla projecção, cria um sentimento, simultaneamente, desconcertante e viciante. Se juntarmos a paranóia suscitada pela repetição e pelo duplicado da acção (neste caso, a actriz Anna Gaskell a percorrer, a pé, a paisagem arquitectural do edifício Southbank Centre, em Londres) ao som inquietante produzido pelo bater dos saltos altos no chão, a competir com The Isle of the Dead, de Rachmaninoff, mais não temos que a combinação perfeita para nos sentirmos fascinados por este vídeo.
The Prisoner baseia-se na sequência do filme La Captive (2000), de Chantal Akerman, deixa-se beber por um certo estilo Hitchcockiano e pede emprestado o cenário ao The Prisioner (1923), o quinto capítulo do Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust.
Ao passar o vídeo em loop nos dois projectores adjacentes, Nashashibi deixou entre eles (o da direita e o da esquerda) um intervalo temporal de seis segundos, correspondendo esse atraso/adiantamento à medida física entre os dois projectores, ou seja, seis centímetros. Esta estrutura de desorientação visual e auditiva, dinamizada por Nashashibi, junto com a capacidade e livre arbítrio que é dada ao observador de atrasar ou antecipar a acção no tempo e no espaço, cria uma estranha sensação de proximidade e cumplicidade.
Uma cumplicidade que nos é dada pela ilusão, pelo tal engano dos nossos sentidos. Ficamos um pouco atordoados até perceber que aquilo que estamos a ver é a mesma projecção/acção, mas com um espaço de tempo diferente. Uma ilusão que é alimentada pelo facto de percebermos que ali, naquele momento, somos os únicos que temos o poder de antecipar ou atrasar o que vai acontecer em seis segundos, tal como num passe mágico. A ilusão reside no factor surpresa, num querer saber suspenso… A desilusão, essa, aparece seis segundos depois. Para uns, a desilusão alivia o estado de ansiedade em que se encontravam, para outros significa apenas a ilusão perdida e a cumplicidade desvendada, que por ser desvendada cúmplice se transforma.
2. Ilusão e Desilusão como Testemunhas
Mas a História é Tempo e este mente. Somos testemunhas de um mundo dominado pelo tempo dos relógios, todos em desacordo uns com os outros. O tempo é egocêntrico e irreversível, é mecânico e artificial. Descura, totalmente, no seu percurso uniforme, a variabilidade dos estados psíquicos dos indivíduos aos quais é imposto de fora com uma força que os obriga a com ele se conformarem.
Se nos debruçamos sobre o nosso passado, as recordações não se alinham com regularidade. Há, neste olhar retrospectivo, nós formados pelos eventos cruciais: momentos importantes, que quebram a continuidade e desempenham a função dos planos nas perspectivas espaciais; situamos os eventos conforme precedem ou seguem estas cesuras da nossa existência. A distância entre estes dois planos também não é homogénea: alguns períodos parecem-nos mais longos, outros mais curtos, embora nós saibamos que, à escala do calendário, do relógio mentiroso, tiveram igual duração.
Numa época vivencial onde cada vez mais a nossa vida está orientada para o futuro, o papel do documento e do arquivo são determinantes, senão mesmo indispensáveis para esta construção do passado. Kristoffer Ardeña (Filipinas, 1976), através do projecto Se Busca Memoria Perdida (fotografia/instalação/intervenção urbana), faz reviver um momento, um passado que volta a ter uma presença temporal na vida de alguém, no agora, neste instante que agora mesmo passou e que já foi arquivado para um “sempre”.
Kristoffer Ardeña trabalha com fotografias perdidas, logo encontradas. Tira fotocópias dessas mesmas fotografias e espalha-as pela urbe, pedindo informações a quem possa ajudar a reconstituir a história daquela fotografia, fornecendo um e-mail, tal como naqueles anúncios de prestação de serviços, onde somos convidados a tirar o contacto do anunciante recortando uma nesga de papel. A perda de contexto, o distanciamento no espaço e no tempo, fizeram com que aquelas fotografias perdessem a sua missão original, apagando as memórias e as histórias pessoais associadas a cada uma delas. Com Kristoffer Ardeña, os passados tentam recuperar Vida, paulatinamente… E assistimos a ressuscitações momentâneas, quando o artista recebe via e-mail algum dado referente à fotografia afixada.
O seu trabalho reflecte uma nova imagem do tempo, liberta da sucessão cronológica e onde cada imagem do passado pode ser objecto de uma “iluminação” no presente, capaz de um despertar da história. Kristoffer Ardeña, para além de fazer com que as fotografias já moribundas tenham de novo uma oportunidade de respirar o ar da Vida, propõe que cada um de nós ajude a contar um pouco dos segredos que a fotografia, perdida no tempo, esconde; muitas das vezes através de uma equivalência, segundo Minor White.
“La equivalencia es una función, una experiencia, no una cosa. Cualquier fotografía, cualquiera que sea la fuente, puede funcionar como un equivalente para alguien, en algún momento, en algún lugar. Si el espectador se da cuenta de que para él aquello que ve en la imagen corresponde a algo en su interior -esto es, la fotografía refleja algo dentro suyo-, entonces su experiencia posee cierto grado de equivalencia.” (Minor White, Equivalencia: tendencia perpetua)
Isto é bem visível numa passagem do filme Smoke, um filme que, em 1995, Paul Auster co-dirigiu com Wayne Wang. Brooklyn, Nova York, Verão de 1987. Auggie Wren, o dono de uma tabacaria, dedica-se a elaborar uma colecção de fotografias peculiar: todos os dias, sempre à mesma hora e durante catorze anos tira uma fotografia a partir da esquina da sua loja. Guarda com todo o respeito mais de 4000 fotografias catalogadas, ordenadas em álbuns negros.
A história recambolesca de como conseguiu a sua câmara fotográfica e por que se vem dedicando a este hobby curioso há tanto tempo – que poderemos denominar como um work in progress, tal como a vida -, servirá de argumento a Paul Benjamin, um romancista de prestígio em crise criativa, devido à morte da sua esposa.
A parte que me interessa, particularmente, neste filme é a sequência de emoções – por parte de Paul Benjamin, um homem fiel à sua, talvez, indiferença e falta de entusiasmo – que se dá quando algo de familiar lhe suscita o interesse aquando do visionamento dos vários álbuns de fotografias de Auggie Wren. São muitos álbuns e, consequentemente, muitas fotografias. Paul Benjamin percorre todos a uma velocidade criticada por Auggie Wren. Este comenta com Paul que, assim, de maneira apressada, jamais irá apreender e compreender a poesia contida nas fotografias que são todas iguais mas todas diferentes ao mesmo tempo.
Paul Benjamin, assente com a cabeça e prolonga o tempo de visionamento de cada página do álbum. E de repente, a sua quase indiferença e desencanto pelas fotografias dá lugar a um turbilhão de emoções: espanto, tristeza, inconformismo… Paul detém-se no momento em que reconhece numa das fotografias um ser querido; nem mais nem menos, do que a sua amada mulher falecida.
O seu comportamento modificou-se. A indiferença deu lugar à nostalgia. Aquela fotografia passa a ter um papel importante para Paul Benjamin e só para ele. Mais ninguém, perante aquela imagem, poderá sentir o que Paul sentiu nesse instante. É a sua História. É a sua Vida. São os seus Sentimentos.
“Lo que una persona recuerda de una visión es algo muy propio, porque ocurren varias distorsiones que cambian su recuerdo de la imagen una vez que el estímulo original ha desaparecido.” (Minor White, Equivalencia: tendencia perpetua)
São os sentimentos de Paul enganados pela ausência. É a ilusão no seu esplendor. É a esperança irrealizável de um regresso que nunca chegará. E é aí que a desilusão testemunha que nem sempre a Verdade é o mais belo caminho.
Cláudia Camacho
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- Publicado:
- Dezembro 18, 2009 / 8:29 pm
- Categoria:
- Curadoria
- Etiquetas:
- Cláudia Camacho, Kristoffer Ardeña, Revista Bombart, Rosalind Nashashibi
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